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Rincha, mula “véia”!

*Rosalvo Pinto

Volto aos meus tempos de criança e de adolescente. Tempos em que convivi com o antigo trem da Rede Mineira de Viação (RMV), nos trechos que, saindo de São João del-Rei, tinha três diferentes destinos: as “Águas Santas”, Barbacena e o “Sertão”. Tempos em que a gente, até carinhosamente, chamava a RMV de “Ruim, Mas Vai”.
A linha das Águas Santas era curta. Saindo relinchando da bela estação de São João del-Rei, logo a maria-fumaça passava sobre o córrego da Água Limpa em um pontilhão de ferro. O nome “pontilhão” já dava medo. Rolavam histórias de mortes e, por isso, poucos se arriscavam a passar a pé naquela geringonça de ferro. Logo adiante uma primeira parada: a estaçãozinha “Chagas Dória”, no bairro de Matozinhos.
Deixando a estação e poucos metros depois, a expectativa da passagem no pontilhão sobre o Rio das Mortes. Para nós meninos aquilo era como se fosse, hoje, atravessar a ponte Rio-Niterói. Quando a maria-fumaça enchia o pulmão, soltava um jato de fumaça branca e arrancava apitando da Chagas Dória, alguns pescadores empoleirados no pontilhão tinham que sair às pressas, às vezes até perdendo um belo mandi no anzol.
E falando em pontilhão, lembro-me, aos 10 anos, do Nico Cassiano nos seus quase 90 anos, que vinha lá da rua dos elegantes bangalôs, atravessava o Matola e me pegava na Vila Santa Terezinha para pescar. Um pedaço de linguiça e uma garrafinha de cachaça no embornal, misturadas com suas chumbadas que pesavam quase meio quilo. Assentado no pontilhão, a cada vez que lançava o anzol com aquela baita chumbada, os pescadores por ali torciam o nariz e resmungavam: “aquele ‘véio’ só serve para espantar os peixes!”
Passada a maria-fumaça, voltavam os pescadores. Depois vinha a parada da curta viagem: a estação “César de Pina”. Logo depois o sonhado destino: o balneário das Águas Santas.
Para nós resende-costenses a César de Pina tinha um atrativo especial. Muita gente, sobretudo homens, costumavam sair de Resende Costa bem de madrugada e andavam umas três léguas a pé até César de Pina e, daí, acabavam de chegar a São João, na volta do trem.
A outra linha era a de São João a Barbacena, passando por Tiradentes. Na subida para Barbacena a maria-fumaça sofria, bufava. Por vezes era até preciso ir jogando areia nos trilhos. Ruim, mas ia! Gastavam-se seis horas de viagem. De Barbacena podia-se pegar a Estrada de Ferro Central do Brasil e continuar para outros rumos: Itabirito, Ouro Preto, Belo Horizonte e até Rio e São Paulo. A RMV tinha uma bitolinha estreita, 60 cm. Parecia até trenzinho de brinquedo perto das imponentes marias-fumaça da Central. Lá era outra história: bitola larga (1,60 m), tudo grande, dava medo! Até o nome era imponente: as “Ramonas”. O relincho era cavernoso, amedrontador. Dureza era aguentar a fumaça e a chuva de carvõezinhos que invadiam os carros. Os mais prevenidos usavam um guarda-pó, que chegava em casa sujo e cheio de buraquinhos queimados.
A terceira linha era a do “trem do sertão”. O sertão era o oeste de Minas. Para nós aquele nome soava como um lugar longínquo e misterioso. Era a linha mais distante. Ia até Ribeirão Vermelho (perto de Perdões e de Santo Antônio do Amparo), às margens do Rio Grande. O mais esperado era a travessia do pontilhão sobre o Rio Grande, perto do qual o do Rio das Mortes parecia uma pinguelinha.
Morando em São João del-Rei e tendo parentes e amigos que circulavam pelo trem do sertão, a gente ouvia causos curiosos. O trem saía bem cedo e chegava de volta já noitinha adentro.
Vivendo no seminário dos salesianos, no alto do bairro das Fábricas, a gente tinha umas duas horas de estudo no início da noite. Era um salão enorme, silêncio absoluto e rigoroso. Ai de quem dormisse, mesmo depois de um dia de rezas, estudos, recreios, aulas e trabalhos. De tanto em tanto, a gente levantava os olhos já cansados e olhava, ansiosamente, um relógio grande lá no alto, no qual estava escrito em latim: Afflictis, lentae; celeres gaudentibus horae (as horas são lentas para os aflitos e rápidas para os alegres).
Pois bem, aquele silêncio sepulcral só era quebrado, todas as noites, ali pelas sete e meia, com o apito prolongado da maria-fumaça, voltando do sertão. Esse apito se prolongava ao longo da avenida Leite de Castro. Nem era apito, era um relincho contínuo. Daí o outro apelido da RMV: “Rincha, Mula Véia!”. Diziam que o maquinista abria o apito de longe para avisar à “patroa” que já podia ir preparando sua janta. Passando em frente à sua casa, seu colega de cabine, o “foguista”, jogava na beira dos trilhos uma braçada de tições fumegantes. Prá “espertar” o fogo no feijão…
Saudades dos trens-de-ferro, desativados no Brasil pelo furor da indústria automobilística, pelos homens da “gloriosa revolução de 64”, e esquecidos por todos os homens (e a mulher) que os sucederam. Um país continental, só nos restaram rodovias vergonhosas e assassinas. Pobre Brasil, que ainda sonha em ser um país desenvolvido, rico e justo! Bão mesmo era o trem, sô!

Um comentário

  1. A leitura deste texto tem que ser acompanhada com a sonoridade das canções de Milton Nascimento:
    “Encontros e despedidas”
    “Ponta de Areia”
    “Morro Velho”
    “Roupa Nova”

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